Epigenética, neurociência e o comportamento civilizador nas relações

Abaixo segue o meu artigo correspondente a Tese de Conclusão de Curso – TCC – que produzi para a especialização em Neurociências e Comportamento na PUC – RS. Cuja nota, me permitam ganhar uns biscoitos, foi 10,0. Risos!

Aproveitem a leitura. Beijos!

  1. INTRODUÇÃO

A epigenética é uma área da biologia que estuda como a expressão do DNA incorpora e modifica tanto o corpo humano quanto o seu comportamento. Isso significa que somos um produto do nosso ecossistema e que muitas de nossas atitudes podem ser justificadas pela forma como fomos criados e pelas experiências que vivenciamos.

O termo epigenética foi introduzido em 1942 pelo biólogo, geneticista e embriologista britânico Conrad Waddington. Ele afirmou que algo poderia ocorrer aos genes durante o seu desenvolvimento, fazendo com que o mesmo gene pudesse fazer coisas diferentes em horas e contextos diferentes e que as características adquiridas pelo gene provocadas pelo estímulo ambiental poderiam ser transmitidas para novas gerações (DEICHMANN, 2016).

Com o avanço dos estudos, constatou-se que para além da hereditariedade, ou seja, da transmissão de características dos pais para os seus descendentes, por meio da reprodução, existem vários tipos de herança não genética e, hoje, há o conhecimento de que muitos desses tipos de herança são epigenéticos. O gene em estado puro é constituído pelo DNA na forma de dupla-hélice. Nas células, porém, são raros os genes em estado puro, eles se apresentam envolvidos por diversas outras moléculas orgânicas, com as quais estão ligados quimicamente. A importância desses revestimentos químicos está, justamente, na capacidade de alterar o comportamento dos genes aos quais estão ligados, tornando-os mais ou menos ativos. O que torna esses revestimentos ainda mais importantes é a capacidade que têm de durar longos períodos, às vezes por toda a vida.

Conforme explica Francis (2015), a epigenética é o estudo de como são feitas e desfeitas essas ligações químicas de longa duração que regulam os genes. Em alguns casos, tais conexões se fazem e desfazem mais ou menos ao acaso, como as mutações. Com frequência, porém, as mudanças epigenéticas acontecem em resposta ao ambiente, à alimentação, aos poluentes a que somos expostos e até às interações sociais. Os processos epigenéticos ocorrem na interação entre ambiente e genes.

Essa compreensão de fenômenos nanométricos, mais especificamente, das modificações que as interações com o ambiente podem proporcionar aos genes, possibilita entender de que maneira o ambiente pode moldar o comportamento, além de ajudar a entender alguns motivos para que o processo civilizador não seja um ideal tão simples de ser alcançado em sua plenitude.

Um dos exemplos mais práticos da influência da interação entre o ambiente e o DNA, e de como as experiências uterinas influenciam na vida futura, pode ser extraído da situação de crianças que vivenciaram a fome ainda na barriga de suas mães na Holanda no final da Segunda Guerra Mundial. Em 1944, os alemães instituíram um embargo de alimentos no país e, com isso, a fome afetou os holandeses, principalmente das grandes cidades da parte oeste do país, sobretudo os mais pobres e a classe média. Em maio de 1945, cerca de 22 mil pessoas haviam morrido no oeste do país. As crianças que enfrentaram a dificuldade ainda na barriga das mães tornaram-se parte de uma pesquisa pioneira sobre desnutrição intitulada Dutch Famine Birth Cohort Study, que ainda se mantém em atividade. Pesquisadores constataram que jovens com 18 anos, expostos à fome durante o segundo e o terceiro trimestre de gravidez da mãe, apresentavam significativo aumento nos níveis de obesidade, mais ou menos o dobro do que foi registrado entre os nascidos antes ou depois da fome (FRANCIS, 2015).

Um estudo posterior, com foco nos efeitos psiquiátricos do período da escassez, constatou um risco maior no desenvolvimento de esquizofrenia entre os que tinham sido submetidos à fome holandesa no período gestacional, bem como depressão e outros distúrbios afetivos. Já entre os homens, o que prevaleceu foi o aumento na ocorrência do transtorno de personalidade antissocial (FRANCIS, 2015).

Esses estudos correlacionais são importantes para se ter uma noção das influências externas e, muitas vezes involuntárias, na vida de cada ser humano. Pesquisas como essas sugerem a importância que tem o cuidado humano no período gestacional, assim como outros estudos apresentados neste artigo mostram também a importância dos cuidados na primeira infância. Além disso, essas correlações motivam investigações mais aprofundadas para entender como se dão essas influências na estrutura do gene.

Ao lado da epigenética, a neurociência, é conceituada como uma área que estuda o Sistema Nervoso Central e suas ações no corpo humano e está presente em diferentes áreas do conhecimento. Os estudos do Sistema Nervoso Central também contribuem muito para entender todos os elementos que fazem parte do processo de tomada de decisão por parte do indivíduo e, portanto, que interferem na relação indivíduo/sociedade. Para melhor compreensão desse fenômeno, o artigo aborda as observações e conceitos propostos por André Palmini (2004) na obra O Cérebro e a Tomada de Decisões.

Pensando no comportamento civilizador e no paradoxo que esse pode resultar, seriam a epigenética e a neurociência contribuintes para explicar determinadas atitudes “inaceitáveis” na convivência humana? Com o artigo, pretende-se apresentar as contribuições que essas duas áreas de estudo podem dar para o entendimento da complexidade das relações sociais e dos comportamentos que são tidos como desvio de determinado padrão civilizado. Para tanto, é feita uma revisitação ao conceito de civilização e de processo civilizador como conjunto de costumes e normas construídas socialmente ao longo dos anos que pode variar de acordo com o espaço e o tempo.

Ao final, conclui-se que para uma noção mais completa dos diferentes comportamentos humanos diante da interação social é imprescindível antes conhecer a amplitude de todos os fatores imbricados nessa relação, desde o funcionamento do cérebro para a tomada de decisões até o contexto de cada pessoa e suas implicações para a vida futura dela. O presente artigo apresenta de maneira breve alguns dos fatores que influenciam os diferentes comportamentos humanos, relacionando os estudos neurocientíficos e biológicos a alguns conceitos das ciências sociais. Conclui-se, ainda, que os estudos da epigenética têm contribuído para a investigação de intervenções que possam reverter complicações causadas aos genes pelo ambiente, sendo essas intervenções ambientais, com a mudança de ambiente, ou medicamentosas.

  • REVISÃO DE LITERATURA

Segundo o sociólogo Norbert Elias, o conceito de civilização refere-se a uma variedade de fatos: ao nível de tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às ideias religiosas e aos costumes. O conceito pode se referir ainda ao tipo de habitações ou à maneira como homens e mulheres vivem juntos, à forma de punição determinada pelo sistema judiciário ou ao modo como são preparados os alimentos. “Rigorosamente falando, nada há que não possa ser feito de forma ‘civilizada’ ou ‘incivilizada’. Daí a dificuldade de sumarizar em algumas palavras tudo o que se pode descrever como civilização.” (ELIAS, 1994, v. 2, p. 21).

O autor acrescenta que se examinarmos o que realmente constitui a função geral do conceito de civilização e a qualidade comum que leva todas essas atitudes e atividades humanas a serem descritas como civilizadas, descobriremos que esse conceito expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo, a consciência nacional. Com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão de mundo e tudo mais.

Conforme apontam Oliveira e Oliveira (2012), com base na obra de Elias, a história das boas maneiras está diretamente relacionada às regras de comportamento social. Essa história refere-se não apenas à questão da etiqueta, mas também diz respeito à moral, à ética, ao valor interno das pessoas e aos aspectos externos que se revelam nas suas relações com os outros. Todas as sociedades, ao longo da história, criaram normas e princípios com a finalidade de orientar as relações entre grupos e pessoas. Apesar de nem sempre procederem do Estado, alguns desses princípios impunham regras que se não fossem seguidas, implicariam em penalidades, que iam da desaprovação à exclusão daqueles que não as respeitassem.

Elias (1939 apud OLIVEIRA e OLIVEIRA, 2012) considera que não há uma intenção deliberada de cada sujeito que produz a civilização, mas são os atos dos sujeitos singulares agregados uns aos outros que a tornam universal e a produzem ou não.

Os costumes e as boas maneiras que constituem a civilização passaram por grandes transformações na passagem da Idade Média para o período renascentista  até alcançarem as características que têm hoje. Situações banais do dia a dia foram aprimoradas, como o comportamento à mesa, a maneira de utilizar utensílios domésticos. Alguns hábitos e necessidades fisiológicas, a exemplo de fungar, cuspir, assoar-se, a exposição do corpo nu e o atendimento aos desejos sexuais tornaram-se cada vez mais privados. A introdução da faca como instrumento para a alimentação, por exemplo, implicou em pensamentos inconscientes que levaram à criação de diversos tabus, ou melhor, condicionaram novas regras sociais, como aquela que proíbe, socialmente falando, levar a faca à boca, apontá-la em direção à outra pessoa ou segurá-la com a mão direita por mais tempo do que o necessário (COSTA; ENDO, 2014).

Voltando as observações para a atualidade, percebe-se que mesmo diante de toda a sofisticação de costumes presentes em diversas culturas, a interação entre o homem e a sociedade é marcada por dificuldades. Diariamente, são comuns atos individuais e coletivos que fogem do ideal civilizado. A corrupção tão frequente, os assassinatos, o atentado ao pudor, a violência contra a mulher, o abuso infantil e o crescimento da violência, em geral, são alguns dos vários desvios do comportamento esperado e regulamentado para um bom convívio social.

A epigenética traz conceitos importantes sobre a influência do ecossistema para o comportamento humano, o que ajuda a entender, de um ponto de vista biológico, o que leva algumas pessoas a se comportarem de determinada maneira e em desacordo com o que é caracterizado como civilizado. Para além da herança genética, as experiências vividas pelo ser humano desde a vida uterina, conforme citado na introdução do artigo, influenciam a maneira como o gene irá se comportar.

Uma pesquisa desenvolvida com ratos e camundongos sobre a reação ao estresse mostrou, por exemplo, que filhotes cuidados por mães mais dedicadas a lambê-los demonstraram na vida adulta um abrandamento da reação ao estresse, quando comparado aos criados por mães menos dedicadas a esse cuidado. Ou seja, a estimulação tátil promovida pelos cuidados maternos tem um efeito suavizador sobre a reação ao estresse que irá durar a vida toda. Quando ocorre a doação interespecífica, ou seja, quando as crias de ratas boas e más lambedoras são trocadas entre si os efeitos se invertem:

“[…] os filhotes biológicos de má lambedoras criados por boas lambedoras se assemelham, em todos os aspectos, aos ratos gerados por mães dedicadas, inclusive no número de receptores para glicocorticoides no hipocampo.” (FRANCIS, 2015, p. 24).

Sobre a ação dos glicocorticoides na regulação do estresse, Moshe explica que os glicocorticoides são hormônios que regulam, além do açúcar, diversas reações no organismo. Eles atuam também na definição do que pode representar uma ameaça ou problema para o organismo. Quando o animal está estressado, os glicocorticoides são secretados, depois são enviados ao cérebro. Os receptores, por sua vez, sentem a quantidade de glicocorticoides e desativam a reação ao estresse. Se esses transmissores não estiverem funcionando efetivamente, as reações ao estresse não serão desativadas ou demorarão a ser desativadas e o animal ou pessoa permanecerá sob estresse por mais tempo. A ação do estresse por longos períodos de tempo pode, inclusive, proporcionar malefícios e futuras doenças, pois destrói as células do sistema imune e de diversos outros órgãos. Então, nos animais que recebem bastante cuidado, a reação ao estresse é mais bem controlada. Os glicocorticoides chegam ao cérebro, desativam o sistema não essencial, mas logo depois são sentidos pelos receptores e as reações ao estresse são desativadas. Nos animais que recebem poucos cuidados, o nível de glicocorticoide se eleva mais, e demora mais tempo para parar de reagir (Informação Verbal) .

  Com isso, é possível notar que eventos ocorridos no início da vida podem afetar o animal no futuro. Um nível alto e constante de estresse no indivíduo, por exemplo, pode ser resultado de alterações epigenéticas como a que foi descrita. É possível, ainda, estipular que nos seres humanos esses eventos podem também os predispor a doenças ocasionadas pelo meio onde vivem, não por herança de genes ruins ou mutação, mas pela maneira como esses genes foram programados por eventos no início da vida.

Outra contribuição valiosa para o estudo dos efeitos das modificações dos genes pode ser extraída de Patrick McGowan e colaboradores (2009). Apesar da dificuldade em estudar as questões da epigenética em seres humanos pela complexidade e heterogeneidade que apresentam e porque não é possível estudar a epigenética no cérebro de pessoas vivas, como é feito com os animais; esses pesquisadores tiveram acesso a um banco de cérebros de pessoas que cometeram suicídio e de pessoas que morreram por acidente de carro e outras razões, e puderam estudar a regulação epigenética em cérebros humanos associada ao abuso infantil. Notou-se que o grupo de pessoas que se suicidaram e que tiveram histórico de abuso na infância teve uma alteração em determinado gene do cérebro, ou seja, foi encontrada uma metilação muito alta na posição crítica do gene, posição onde o fator de transcrição NGFI-A se incorpora ao gene. A metilação alta nessa posição acaba com a atividade do gene.

Sobre esse processo de transcrição, Moshe explica que, normalmente, quando bons estímulos acontecem, o ser humano libera serotonina, neurotransmissor que tem como algumas das várias funções estabelecer a comunicação entre as células nervosas e regular o humor. Então, se o animal recebe bastante cuidado, ele libera a serotonina. A serotonina, por sua vez, ativa um fator de transcrição que se vincula ao gene e atrai outras enzimas. A vinculação do fator de transcrição e das enzimas ao gene modifica o gene ao redor. Quanto mais o animal é bem cuidado, mais ele tem genes caracterizados por uma vinculação a grupos acetila e a um fator de transcrição. Quanto menos cuidados o animal recebe, mais o gene estará metilado. O grupo metila é constituído por um átomo de carbono ligado a três átomos de hidrogênio (CH3). A metilação no gene ocorre em diferentes graus. Em geral, quanto mais metilado, menos ativo é o gene.

Então, recebemos dados consistentes com o que vimos nos ratos de que as experiências no início da vida programam o gene diferentemente. Esta é uma marca química no gene no cérebro de crianças abusadas, que permaneceram com a pessoa até sua morte. […] As análises mostraram que há mudança em todo o lugar e que há uma marca física que permanece no cérebro e muda a maneira como ele trabalha, provavelmente, durante toda a vida (informação verbal).

Os estudos possibilitaram argumentar que os processos epigenéticos em seres humanos, principalmente em relação ao abuso infantil, não são tão diferentes dos que vêm sendo observados em ratos. Outra contribuição importante é que, se no nível da mutação e da herança genética as intervenções ainda não são possíveis, as alterações epigenéticas são reversíveis. Cientistas defendem que fármacos podem mudar o equilíbrio do sistema, modulando epigeneticamente, ativando genes antes desativados, por exemplo. Pesquisas indicam que essa reversibilidade pode ocorrer também com a mudança de ambiente, mudando o ser humano ou animal de um ambiente ruim para outro mais adequado. Por esse motivo, os estudos da epigenética podem revolucionar a ciência, com a descoberta de possíveis soluções para patologias diversas.

  • CONTRIBUIÇÕES DA NEUROCIÊNCIA

Assim como há uma interação entre o ambiente e os genes, objeto de estudo da epigenética, estímulos internos ou externos também influenciam diretamente o comportamento do indivíduo,  o que leva a uma reação, seja um ato motor de aproximação, de busca, de dizer e realizar algo, ou até mesmo de não fazer algo.  Conforme André Palmini: Essa resposta leva a uma conseqüência que será sentida, vivida, experimentada no futuro. Seja no segundo seguinte ou 10 anos depois, a conseqüência de um ato que nós ou os animais realizamos no presente será sempre sentida no futuro. (PALMINI, 2004, p. 72).

O autor explica que a grande diferença entre o que é futuro para o homem e outros animais é que os animais respondem ao ambiente de forma impulsiva e instintiva, com uma perspectiva totalmente centrada no momento presente, visando apenas à consequência no futuro imediato. Ou seja, agressão e defesa têm por objetivo resultados imediatos, necessários para saciar vontades básicas dos animais, como alimentar-se, ou sobreviver a ameaças instantâneas. Dois tempos são definidos durante o processo de tomada de decisão. O tempo 1, como tempo variável entre o estímulo e a resposta e o tempo 2, entre a resposta (decisão, ato) e a consequência desse comportamento no futuro.

As respostas que damos aos estímulos que recebemos constantemente podem ser mais ou menos impulsivas. Em geral, as mais impulsivas estão direcionadas à satisfação de necessidades ou vontades para as quais queremos um resultado positivo imediato (uma recompensa imediata). No entanto, muitas vezes, um resultado imediato com valência positiva implica em um resultado a médio ou longo prazo com valência oposta, desfavorável. “Assim, o conjunto de consequências dos nossos atos exerce um feedback contínuo no processo de tomada de decisões […].” (PALMINI, 2004, p. 72, grifo do autor).

Dessa forma, o processo de tomada de decisões do cérebro é comparado a uma sanfona ou a um acordeão, porque antes de tomar uma decisão, “[…] o nosso cérebro ‘olha’ para o passado (sanfona abre para um lado) ao mesmo tempo em que ‘olha’ para o futuro (sanfona abre para o outro lado).” (PALMINI, 2004, p. 75). De maneira mais detalhada, para uma decisão adequada a determinado indivíduo, em seu contexto específico, o cérebro precisa comparar cada novo estímulo com situações semelhantes que ele vivenciou no passado, ou que lhe foram transmitidas pela cultura (educação, leitura); decisões que tomou no passado quando vivenciou estímulos semelhantes ou decisões que outras pessoas tomaram em circunstâncias semelhantes e que foram transmitidas pela cultura; a memória cognitiva de quais foram as consequências dessas decisões; as memórias afetivas de como se sentiu com as consequências.

Durante o processo de tomada de decisão, o cérebro precisa ser capaz de olhar para o futuro, que não existe, exceto como uma representação cerebral em cada um de nós, e antever, com base nas experiências já vivenciadas, o cenário de consequências futuras mais prováveis e qual será o sentimento do indivíduo com base nesta ou naquela consequência (DAMASIO, 1995; FUSTER, 1997; ROLLS, 2000; STUSS; PICTON; ALEXANDER, 2001 apud PALMINI, 2004).

Revisitados os processos neurológicos de tomada de decisão, é importante destacar dois fatores de relevância que podem influenciar nesses processos. O primeiro deles é que existe um potencial de prontidão, que consiste numa modificação neural que aparece alguns milissegundos antes da ideia que a pessoa tem de fazer determinado movimento. Estudos mostram que antes do desejo consciente de realizar o movimento e da realização do movimento, por exemplo: mexer um dedo, já existe no cérebro uma modificação sugerindo a noção de fazer esse movimento. É uma fase pré-consciente ou inconsciente antes mesmo da percepção de querer fazer o movimento, o que quer dizer que a decisão foi tomada antes que a pessoa tivesse consciência dela. O resultado dos estudos motiva alguns questionamentos: o que provoca esse potencial de prontidão e até que ponto o ser humano tem o poder de decisão sobre determinada ação?

Outro aspecto que pode influenciar na relação entre indivíduo e sociedade e na capacidade do livre arbítrio é a existência de alterações no metabolismo e estrutura cerebrais em regiões chaves para controlar o comportamento humano, a exemplo da região ventromedial pré-frontal, região situada mais à frente no cérebro e também considerada a mais evoluída. Essas alterações podem ser provocadas ou não por acidente. Estudos mostram que patologias e acidentes que ocasionam a perda de material na região pré-frontal podem alterar o equilíbrio entre as faculdades intelectuais e as inclinações impulsivas do indivíduo.

O mais conhecido caso de acidente com alteração da estrutura cerebral e impactos para o comportamento humano é o caso Phineas Gage, operário que no ano de 1848 teve a região frontal da cabeça atravessada por uma barra de ferro, o que causou uma lesão ao córtex pré-frontal, provocando a perda de massa encefálica. Phineas sobreviveu ao acidente, porém apresentou modificações em seu comportamento, passando a ter dificuldade de relacionar-se, tornando-se irritável, agressivo e explosivo. Seu caso, então, tornou-se referência para os estudos neurocientíficos (DAMASIO et al, 1994).

Palmini (2004) também apresenta o caso de LM, uma mulher de 29 anos, que aos 28, após uma discussão com o ex-marido, tentou suicidar-se com um tiro de revólver na região frontal lateral da cabeça, atingindo as regiões pré-frontais bilateralmente, mas sem lesar estruturas cerebrais vitais. Após cirurgia, ela teve uma excelente recuperação, mas uma perda muito significativa de tecido pré-frontal. Apesar da recuperação aparentemente completa, essa mulher passou a ter comportamento social altamente inadequado, com impulsividade, tendência à promiscuidade e desleixo com o filho. Segundo o autor, LM apresenta uma boa compreensão e capacidade de discussão de conceitos ético-morais. Ela sabe o que é certo e errado e, quando confrontada com as atitudes e consequências dos atos cometidos por ela, admite ter errado e propõe-se a melhorar o comportamento. Entretanto, ela tem absoluta incapacidade de traduzir esse entendimento em atitudes condizentes.

Outro estudo realizado com pessoas com transtorno de personalidade antissocial (Antisocial Personality Disorder – APD), mostrou que pessoas com personalidade pseudopsicopática apresentavam danos na substância cinzenta e branca no córtex pré-frontal e déficits autonômicos. Adrian Raine e outros (2000) realizaram um estudo com um grupo composto por 21 homens com APD; outro grupo composto por 27 homens com dependência de drogas ou álcool ao longo da vida, mas sem personalidade antissocial e um grupo com 34 homens que não tinham APD nem dependência de álcool ou outras drogas. Essas pessoas tiveram que dar um discurso em vídeo sobre as suas falhas.

A pesquisa mostrou que os indivíduos sem APD e sem dependência de álcool ou drogas ativavam muito o sistema nervoso autônomo, a condutância da pele e aumentavam os batimentos cardíacos. Situação similar ocorria aos indivíduos dependentes de álcool, mas sem personalidade antissocial. No entanto, o grupo com personalidade antissocial não registrou aumento dos batimentos cardíacos e da condutância da pele, ou seja, aparentemente essas pessoas não tinham sentimentos como remorso e culpa. Ao verificar a quantidade de substância cinzenta nas regiões pré-frontais, os pesquisadores constataram que essas pessoas possuíam um volume 11% menor de substância cinzenta quando comparados aos demais.

Conclui-se, portanto, que as lesões ou disfunções pré-frontais causam “[…] uma incapacidade para a tomada de decisões vantajosas para o indivíduo, levando em conta o seu contexto específico.” (PALMINI, 2004, p. 78).

Nesse contexto, qual seria o grau de responsabilidade dessas pessoas para os atos antissociais que elas cometem? Nota-se que diversos fatores podem influenciar na conduta individual e no processo de tomada de decisão. Esses estudos contribuem muito para uma análise mais apurada do comportamento humano e contribuem também para as esferas do Direito e da Psicologia, por exemplo.

3          RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com tudo o que foi observado, evidencia-se a complexidade da relação indivíduo-sociedade e os problemas que põem em xeque os ideais civilizadores de determinados grupos sociais. Não é possível analisar os diferentes comportamentos humanos diante da interação social sem antes ter a noção da amplitude de todos os fatores imbricados nessa relação, incluindo aí os fatores biológicos por ora observados, desde o funcionamento do cérebro para a tomada de decisões até o contexto de cada pessoa e suas implicações para a vida futura dela.

Vimos neste artigo que as sociedades, ao longo da história, criaram normas e princípios com a finalidade de orientar as relações entre grupos e pessoas. Uma análise mais focada no indivíduo mostra que as regiões pré-frontais do cérebro humano precisaram passar por uma evolução para se adaptar a esses comportamentos sociais.

O comportamento aceitável socialmente, no entanto, depende de um complexo funcionamento cerebral e de um ecossistema favorável na vida fetal e infância, ou seja, de um contexto epigenético favorável. Tratar das alterações nesses sistemas é parte do trabalho diário de profissionais especializados, a exemplo de psiquiatras, psicólogos e neurologistas, mas, muitas vezes, esse tratamento é descuidado, devido à falta de investimentos do poder público nessas áreas, o que dificulta o acesso de pessoas mais pobres a esses recursos. Em outros casos, o tratamento das disfunções cerebrais e das consequências de um ecossistema ruim para a vida do indivíduo é descuidado por preconceito e falta de conhecimento. No caso da atuação de psicólogos, por exemplo, observa-se pouca menção desses profissionais nas políticas públicas de saúde (BÖING; CREPALD, 2010) e, em muitos casos, uma contratação de número insuficiente para atender a vasta população carente de recursos.

O conhecimento da complexidade do funcionamento cerebral e epigenético, de como essas estruturas afetam as relações sociais e, a compreensão de que os costumes e as normas são elementos que foram construídos socialmente ao longo dos anos, possibilita um entendimento cientificamente embasado, reduz o julgamento das ações do próximo apenas por um viés emocional, e permite que sejam adotadas medidas mais acertadas para os cuidados da saúde mental e emocional do indivíduo. Essas medidas mais acertadas incluem a necessidade de mais investimento em condições favoráveis para um desenvolvimento saudável da mente e também no tratamento de psicopatologias do que propriamente em sistemas de força e coerção. Extingue-se também a ideia de que uma mesma fórmula é capaz de conduzir diferentes pessoas ao sucesso imediato como afirmam alguns profissionais dedicados a temas como a inteligência emocional e o comportamento.

O desenvolvimento saudável depende da construção de ambientes favoráveis na família, na escola e demais espaços sociais e, em alguns casos, do acompanhamento especializado da saúde mental. Com o artigo, evidencia-se que os estudos neurocientíficos e epigenéticos possibilitam o acesso a um melhor entendimento do funcionamento cerebral e dos genes e trazem a esperança por intervenções que possam reverter problemas importantes de saúde, sejam essas intervenções medicamentosas ou ambientais.

4          RELEVÂNCIA E IMPACTO SOCIAL

Comumente, o comportamento humano é julgado de maneira emocional. Diante de um desvio do que é aceitável para uma boa convivência em sociedade, as pessoas recorrem às emoções expressas pelo corpo em um dado momento para qualificar o desvio e quem o cometeu. A própria legislação está focada muito mais nas sanções para as infrações que nas exceções e nos contextos sociais. O artigo apresenta análises e resultados de pesquisas científicas com grande relevânciia para entender a complexidade do comportamento humano e a maneira como essa complexidade influencia nas relações sociais.

Como foi explorado ao longo do artigo, diversos fatores influenciam a maneira como o ser humano responde a determinado estímulo e a maneira como se comporta perante a sociedade. Esses fatores também podem provocar impactos diversos na saúde dos indivíduos. Com isso, evidencia-se a importância do investimento nos estudos epigenéticos e neurocientíficos e também em condições mais favoráveis para um melhor desenvolvimento da mente e da saúde.

Ficou evidente, ao longo do texto, que alterações no metabolismo e estrutura cerebrais em regiões chaves para controlar o comportamento humano podem alterar o equilíbrio entre as faculdades intelectuais e as inclinações impulsivas das pessoas. Mínimas interferências nesses sistemas irão intervir na capacidade de flexibilizar condutas e de melhorar o processo de tomada de decisões para cada momento da vida.

 Em geral, as pesquisas da epigenética ficam restritas às áreas biológicas e da saúde. Com o artigo, buscou-se relacionar algumas dessas pesquisas ao conceito sociológico de civilização e mostrar, por meio de uma linguagem mais acessível, a importância desses achados científicos para o entendimento das complexidades sociais e do comportamento humano, evidenciando a relevância social da epigenética e da neurociência.

REFERÊNCIAS

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BÖING, Elisângela; CREPALDI, M. A. O psicólogo na atenção básica: uma incursão pelas políticas públicas de saúde brasileiras. Psicologia: Ciência e Profissão (Impresso), v. 30, p. 634-649, 2010.

DAMASIO, H. et al. The return of Phineas Gage: clues about the brain from the skull of a famous patient. Science, [S. l.], v. 264, n. 5162, p. 1102-1105, May. 1994. DOI: 10.1126/science.8178168. Disponível em: https://www.science.org/doi/abs/10.1126/science.8178168. Acesso em: 17 out. 2021.

DEICHMANN, U. Epigenetics: The origins and evolution of a fashionable topic. Developmental Biology, [S. l.], v. 416, n. 1, p. 249-254, Aug. 2016. DOI: 10.1016/j.ydbio.2016.06.005. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0012160616302974?via%3Dihub. Acesso em: 17 set. 2021.

ELIAS, N. O Processo civilizador: Uma história dos costumes. Tradução Ruy Jungaman. Revisão e apresentação Renato Janine Ribeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, v. 2, 1994. Disponível em: https://institucional.ufrrj.br/portalcpda/files/2018/09/ELIAS__Norbert._O_processo_civilizador_volume_1.pdf. Acesso em: 15 out. 2021.

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